Tuesday, June 14, 2016

CLARICE




Ela desenhava um pássaro nas coxas, uma asa em cada par. Era na carne que voava. No alado céu de pelos macios, mergulhava, com seu voo rasante de quem sabe que tênue é tudo que separa. Era inteira sendo partes que se tocavam no íntimo som das águas,quando molhava suas asas. Terra, céu, mar, ar não lhe faltava, tinha fôlego de peixe. Nadava, nadava nos espaços que seu corpo permitia, mas ninguém entendia e julgava Clarice. Só porque nasceu mulher, não podia explorar as paisagens que se estendiam carne afora, tinha que carregar suas asas encolhidas nos ombros, pesadas de tanto guardar seus sonhos? Não. Clarice não aceitava, tinha suas asas nas coxas. Apertava entre as pernas o mundo. Nas paredes internas do seu útero, um dia descobririam grafitado um poema, porque Clarice era isso : carne viva e se servia como hóstia que colava no céu da boca pra nos lembrar o quão profano é o sagrado, no corpo que possui asas.
Que mistério tinha Clarice? Ser Clarice e mais nada.



(RaiBlue)

* Pintura de Guilherme de Faria.

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