POR UM FIO...


Hoje senti uma enorme vontade de evaporar ,
tornar-me nuvem , queria brincar no céu que
recuava através da vidraça , fixando vertigens nos
olhos da lua cheia que me espiava e exercia seu
poder feminino sobre mim , sentia-me intensa
mente sedutora , desejos à flor da pele exalavam
um perfume almiscarado, encharcando os lençóis
de sonhos rubros...
Mas esta lua era só minha, eu a imaginara assim, pois a que circulava lá fora era
uma lua atômica , prestes a explodir naquela paisagem artificial...

Era inverno, não somente a estação, eu também invernei , chovia em mim sensações infinitas , verdadeiros relâmpagos atravessavam a mente e
a carne , resolvi hibernar, por um longo período ,
no meu quarto , ficar com as minhas coisas , enrolar-me nas lembranças , colcha de
retalhos a diminuir o frio da solidão dos
dias sem sentido...


E será que haveria algum sentido a ser encontrado ?
Clariceanamente indagava-me , secretamente... Era uma viagem que não sabia onde daria , mas sempre fui atraída pelo desconhecido , deixei-me ir de corpo inteiro...
Apenas sabia que se tornara irrespirável o vazio lá fora , aglomerados de solidão circulavam nas avenidas geladas , onde o sangue escorria no cimento
e petrificava pela indiferença , rios de egoísmo inundavam a selva de pedra e levavam qualquer vestígio de humanidade...O coração se tornara selvagem , somente eu insistia em sentir...
Voei para dentro de mim...


Fugi para minha caverna , contrariando Platão ,
nem sempre os filósofos têm razão , eles nos provocam, apenas , o delírio é nosso ...

Meu quarto era o meu mundo , preferia ficar ali dentro , onde me habitavam multidões ainda bem humanas , onde alguma memória poderia ser preservada , um subsolo ainda desintoxicado , muito fértil , repleto de histórias , não lineares é verdade , porque sou fragmentada por natureza , mas elas , de alguma forma , intercalavam-se , talvez pelo destino ou por pura coincidência , não sei bem ao certo no que acreditava. Considerava que tudo era invenção , até eu mesma reinventava-me...

Quem eu era agora não correspondia àquela de uma hora atrás , às vezes , os segundos mudam nossas vidas completamente. Se não quisesse mudar , teria que paralisar o tempo , ser apenas uma fotografia , igual àquela que me olhava fixamente da cabeceira da cama , intacta , mas amarelada , como o amor que ali ficou retido pela moldura do tempo , amor em tom sépia, usando uma linguagem pós-moderna , mas diferente dos amores modernos à base de extasy e cálculos exatos de entrega , como se o amor fosse matemático , como se fosse uma equação com solução pertencente ao conjunto real , e não uma equação impossível de ser resolvida, sempre tendendo ao infinito , já nem sei se positivo ou negativo...

O que seria mesmo real ? A dor que ninguém vê ?
O amor que ninguém toca ?A distância ? A saudade ?
Parecia que somente eu via as coisas ...Eu era a estranha , os outros , normais...

Não , não , decidi que eu mesma inventaria minha própria realidade. Eu me agarraria a cada detalhe guardado nas minhas gavetas para me salvar daqueles dias cinzas que me cercavam . As gavetas sempre guardam segredos...talismãs...mapas...
novelos...

Tudo , mesmo morto ou matado , continuava muito vivo em minha caverna, tentava segurar o novelo que me tiraria daquele inverno eterno...Estaria eu num labirinto ? Seria eu mesma o Minotauro a tentar devorar-me , naquela seCreta ilha que criei ?

Não sei , ao menos conscientemente não sabia..., mas qualquer coisa seria melhor do que aquele palco de cimento e de personagens mascaradas, algemadas a um presente sem passado nem futuro , uma odisséia no cyberespaço , sem heróis nem ideologias , onde os seres humanos tornaram-se verdadeiros alienígenas para mim , seres metalizados pelos artifícios das cidades virtuais , redes de ilusão ou seria uma espécie de geração futurista que já se apresentava e
dominava o mundo, simplesmente ?

O imenso oceano da realidade terminaria por encobrir minha ilha em pouco tempo, nada resiste às suas águas...
Mas tudo que eu queria era permanecer ali , naquele lugar improvável de ser encontrado , atravessei os himalaias de solidão das metrópoles para me descobrir naquele pequeno espaço , surpreendida pelos meus próprios olhos a fixar-me no espelho.Pela primeira
vez me vi refletida em minhas retinas , sem máscaras, pela primeira vez adentrei minha alma ...
Foi assustador ! Havia uma parte sombria , onde habitavam meus medos e outros sentimentos mesquinhos adquiridos , porém havia outra cristalina, bem diferente do que imaginara. A realidade não conseguira poluir totalmente meus interiores sagrados...

Enquanto minha ilha não afundava , continuava a brincar de nuvens , repletas de lembranças doces..., feitas de algodão..., e a saudade se dissolvia na boca e era azul..., últimos vestígios de humanidade , quiçá ... Será que alguém sentiria minha ausência ? Talvez tudo que eu quisesse fosse apenas receber um bilhete dizendo ‘sinto falta de você’...
Mas nenhum sinal , nenhuma voz , senão ecos do passado ali conservados no formol da memória emotiva ...

Segurava firme o novelo , não como fuga , contudo como questão de sobrevivência...Deixar o novelo se partir seria cair no mais profundo abismo, na pedra pontiaguda da realidade, seria letal...Não que eu mesma não fosse um abismo , sabia que era , mas este era inventado, poderia deslocar uma nuvem azul para aparar minha queda , seria transportada ao céu , suavemente ou seria ao inferno , através de uma serpente ? Não sei , ao certo , o que seria melhor imaginar , decidirei no caminho , ouvindo um blues de despedida da Janis in ‘Cry Baby'...
Um cheiro de pérola exalava da concha do infinito... deve haver algum sentido no que vem depois...


(Raiblue)


P.S.: Direitos reservados( Registrado na Biblioteca Nacional.)

Comments

Unknown said…
Meu, você escreve MUITO bem, uau.

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