Sunday, September 28, 2008

Em minhas gavetas, um tango em Paris!




Quem não souber povoar a sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente.


( Charles Baudelaire )


Estou guardada em muitas gavetas.

Eu, dentro das gavetas, e, dentro de mim, muitas outras, repletas de doses de medo e de coragem. Um coração selvagem, felino, que, às vezes, se derrete a certos olhares e toques, e se entrega à manha das manhãs sem pressa...

Das minhas mãos, as caravelas partem, em rumo ao destino traçado na palma, misteriosamente...Ondas levam e trazem os barcos, a turbulência também era prevista, fazia parte da viagem. O vento do pensamento sopra as velas. Como será por trás dele? Será oco? Será eco? Queria perfurá-lo para saber o que jorraria...

Não sei, mas acordei assim, enjoada, talvez pela difícil travessia, através das ondas noturnas. Estava agitada, contudo silenciosa, como uma gata arisca e sem dono, farejando a vida sem me apegar... Teria eu sete vidas?

Liguei o som, como faço todas as manhãs, quando eu levanto. Afinal, todo animal gosta de música, felino ou não. Precisava ouvir alguma coisa que cortasse aquele silêncio estrondoso da realidade, prenunciando a multidão, que me estourava os tímpanos de manhã cedo! Mas nem o piano conseguia deter a minha angústia baudelaireana e todo o mal do século que me asfixiava nesta manhã. Eu, maldita como ele, o poeta, penetrava as multidões, apenas para engoli-la e, depois, vomitá-la. Ela contém as diferenças camufladas como uma camaleoa.Todos juntos numa grande exclusão, disfarçada pelas máscaras da hipocrisia!

Paradoxalmente, a multidão fecundava minha solidão, muitas vezes. Era ela que me dava as personagens que eu precisava para criar, para me recriar.

Se me perguntassem que dia é hoje, não saberia dizer. Ando sempre assim, alheia ao tempo cronológico, afinal, como poderia segui-lo, se sou não-linear?

Definitivamente a vida não era tão doce, como pintou Fellini...

Tudo em mim é uma sucessão de flashes que vão acendendo a memória perdida na escuridão do caos das cidades.
Vivo desses lapsos...Seria eu mesma um grande lapso?
Algo que deu errado, na hora em que Deus estava manipulando a fórmula? Uma mistura explosiva, alucinógena?

Sei lá, sinto-me estrangeira em qualquer lugar aberto, fora de mim... Precisaria pular para dentro, se quisesse saber de quê substância eu era feita.

E, como uma gata, pulei o muro e adentrei as gavetas. Gatos adoram gavetas, pois elas sugerem aventuras, descobertas! As maiores descobertas são sempre solitárias... São intensas, difíceis, mas, muitas vezes, excitantes! Não queria ir a lugar algum, apenas queria estar dentro, perambulando pelas gavetas, que eram como janelas fechadas, sempre despertando o desejo de ver o que estava por detrás da vidraça.

Eu era um Spleen, e as minhas gavetas poderiam ser Paris!
Toda a minha melancolia poderia ser despejada no Sena ou, até mesmo, eu poderia me afogar em toda a poesia que nele se encontra mergulhada e transbordando na superfície iluminada pela cidade luz! A luz estava, portanto, em minhas gavetas...

E quantas vezes saímos em busca de claridade, lá fora? Mera ilusão...

A luz existe, porque existe a escuridão, e vice-versa. Há tanta luz em Paris, porque há, também, grande escuridão, onde nasceram os poetas e toda a arte. Nas sarjetas, nos submundos, nos becos escuros a imaginação acende, a melancolia recria as paisagens, desvenda o que corre nos subterrâneos caminhos. É na escuridão que se revela a fotografia. Será somente uma imagem? Até que ponto o que se vê, é, de fato?

O guarda-chuva não guarda somente a chuva, pode guardar beijos, que, mesmo não estando à vista, estão acontecendo...
Beijos explícitos no implícito da chuva...

A toda hora, alguma coisa que não vemos acontece.

Portanto, as coisas são mais que luz e mais que escuridão...
Eu só existo nesse intervalo entre uma coisa e outra, onde ecoa o silêncio subversivo do espírito artístico e felinamente arteiro, também! Não sou nem a imagem nem o escuro, já que neste último existe luz. Eu sou o intervalo, onde habita o indefinido...Um abajur em algum canto de mim e a lua a nos entontecer, feito uma miragem...

Sou o poente onde os gatos fazem a festa, pulando de uma gaveta à outra, desenrolando o novelo e a novela que escrevemos e guardamos, capítulo por capítulo, sempre adiando o final. Sou o último tango em Paris que não termina nunca, porque, no fundo, sabemos da eternidade de tudo que, simplesmente, é.

(Raiblue)


P.S.: Todos os direitos reservados( Registrado na Biblioteca Nacional.)

5 comments:

Perturbadoramente questionadora said...

Querida poetisa ler o que você escreve é entrar noutro mundo, é viver outra vida, e num segundo enche a minha alma que julgava vazia ...
Que Deus lhe continue a iluminar sempre e para sempre em cada letra que escreve, em cada coração que conquista e em cada alma que desperta...

Sublime

Beijinho com carinho

Vânia ("darsham")

Eliana Mara Chiossi said...

Texto repleto!
Um meio mundo, uma terra povoada de imagens e insights.
Prazer em conhecer!

Beijos

Jota Reis said...

Muito bom gostaria de trocar algumas palavras...

Anonymous said...

Ah, te achei de novo...que escuridão no teu blog, meu Deus, tudo preto rssss rsss o meu é bem branquito.Olha que bonitinho:
www.oscorvosnomilharal.blogspot.com

Eliana Mara Chiossi said...

Muito lindo...
Você é uma pessoa bem iluminada mesmo,
que bom que esta internet faz a gente se encontrar.
E somos vizinhas, né?
Moro no Itaigara e você?

Beijins